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A Nossa Herança Medieval

A Antiguidade acabou, mas continuamos com o sistema de democracia dos gregos, o direito romano, o monoteísmo judaico, utilizamo-nos da agricultura de regadio dos egípcios e moramos em cidades como as dos mesopotâmicos. Da mesma forma, a Idade Média nos trouxe inúmeras coisas que permaneceram até a atualidade. Territorialmente, a Idade Média foi crucial para determinar os contornos políticos e territoriais da Europa atual. Apesar de muito modificada com a expansão napoleônica e com as Grandes Guerras, as culturas locais e identitárias são fruto desse período. 

A Guerra entre a Rússia e a Ucrânia remonta a um conflito medieval em Rus de Kiev sobre a dominação russa no território atual ucraniano. O pedido de independência da Catalunha na Espanha remete ao Condado de Barcelona que teve um domínio carolíngio no século VIII, diferenciando-se do restante da península ibérica, que estava sendo invadida pelos mouros. O Brexit demonstra claramente a independência e distinção do Reino Unido do restante da Europa, formada por saxões, celtas e escandinavos numa ilha a parte, cujo desenvolvimento foi único em relação a toda o continente europeu. 

Dubrovnik (Croácia)

[...] A vertente mediterrânica da Europa ocidental, disposta em um arco que vai de Dubrovnik, na Croácia, a Málaga, na Espanha, continua a ser a grande frente de interação e tensão com a África e Oriente Próximo. O pequeno Condado Portucalense continua tão peculiar na Península Ibérica como o foi desde o século XII. A parte norte da Itália é tão mais continental e germânica quanto sua contraparte meridional é mediterrânica e culturalmente diversificada. O mundo nórdico é uma realidade cultural, étnica e linguística articulada ao centro europeu, mas, guardando suas especificidades, enquanto a Europa Central e do Leste ainda procuram a este se integrar. Mesmo os maiores países, como França, Espanha e Alemanha, guardam nítidas diferenças entre áreas mais “antigas”, como a Île-de-France, Catalunha e Suábia, e as mais “novas” do perímetro histórico, como a Gasconha, Andaluzia e Pomerânia (COSTA, 2016, p. 126). 

Todavia, não foram apenas territórios e culturas que permaneceram iguais no tempo, o pensamento medieval ainda é muito atual. Quem não gosta de assistir um filme de herói que salva a donzela em perigo? Apesar de isso ser mais antigo do que o medievo, foi nele que a tela de cavalheiro e dama foi pintada como conhecemos hoje. A teologia medieval foi retomada em parte pelos teólogos protestantes nos séculos subsequentes, sem falar na Igreja Católica que praticamente manteve suas doutrinas presentes na Idade Média iguais na atualidade. Uma missa contemporânea não carrega muitas diferenças da que era realizada 700 anos atrás. A ideia de laços de fidelidade e honra mútua, mesmo desgastada, ainda é o cerne de relações políticas atuais. A pressão dos barões para que o rei inglês assinasse a magna carta em 1215 lembra a pressão atual de grupos sociais no Chile para escrever uma nova Constituição. As revoltas camponesas do século XIV também nos faz pensar nas revoltas cartistas do século XVIII e nas revoluções socialistas do século XX. A posse de terras como marco de riqueza passou a ser mais uma forma de troca comercial e não mais a principal como no Feudalismo, entretanto, ela continua sendo um marco referencial de detenção de riquezas. Os grandes agricultores continuam sendo uma grande voz ativa no mundo, devido a sua importância alimentícia para todos os que vivem nas cidades. A dependência urbana do campo aumentou mais ainda e a criação dos burgos com a construção das cidades veio a encontrar seu ápice apenas na década de 60 e 70 no Brasil, lugar antes nunca sonhado pelo homem medieval.  

York (Inglaterra)

Descobriu-se que o mundo não era formado apenas de 3 continentes como se pensava. As Américas e a Oceania provavam a limitação espacial do poder conquistador medieval, ao mesmo tempo em que o maior império por áreas contíguas se formava exatamente nesse período, o Império Mongol. Uma cultura de antíteses, entre o sacro e o profano, influenciou as artes barroca e rococó em terras tupiniquins, assim como a tradição do carnaval veneziano e a quarta-feira de cinzas. As Cruzadas alimentaram as rivalidades entre cristãos e muçulmanos que podem ser sentidas até hoje em todo o mundo, especialmente a cidade de Jerusalém e na Questão da Palestina. Os árabes como uma sociedade militarizada atual nos faz lembrar as depredações mongóis nas tomadas de Bagdá (1258) e de Alepo e Damasco (1260) que arruinaram o que havia sobrado do esplendor do califado Abássida. Exteriormente, nesse período, foi que “a Europa conseguiu preservar seu nascente patrimônio cultural e material, o que não aconteceu ao mundo islâmico de então que enveredou pelo militarismo seljúcida e mameluco” (Ibid., p. 127). A centralização política da Baixa Idade Média forma até hoje os modelos vigentes de Estados Nacionais, retirando o absolutismo monárquico que caracterizou a Modernidade.  

Estrasburgo (França)

É claro que as estruturas econômicas feudais mudaram, o comércio passou a ser uma atividade mundial, os hábitos se transformaram, as culturas se interligaram e a educação advinda das primeiras universidades ministrada para poucas pessoas, se tornou um direito de todo cidadão nos países ocidentais. As comidas se modificaram e um Novo Mundo se erguia no horizonte, nunca, talvez o homem medieval tenha pensado que desse Novo Mundo viria grande parte da alimentação mundial, sendo produzida pelo Brasil, e que de uma nação como os Estados Unidos as políticas e relações em todo o mundo seriam definidas.

Catedral de Milão (Itália)

Referências 
COSTA, S.P.M. Idade Média: mil anos no presente. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2016. 
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Tradução de Francis P. Janssen. Introdução de Naiara Damas. Posfácio de Anton Van Der Lem. São Paulo: Penguin, 2021.
       

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