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A Baixa Idade Média e seus Conflitos

Durante a Alta Idade Média (séc. V a X) houve uma ruralização da Europa, uma consolidação da Igreja e uma descentralização política e econômica que caracterizou o feudalismo. As relações se baseavam em laços de fidelidade e honra mútua entre nobres (suseranos e vassalos) e entre senhores feudais e servos. 

Já a partir do século XI (Início da Baixa Idade Média), com o início das Cruzadas, o continente europeu começou a ver um ressurgimento comercial e urbano em seus territórios, devido à ascensão de uma nova classe social: a burguesia. Antes, o feudo continha tudo o que o camponês e o senhor precisassem, fabricando seus próprios produtos e consumindo-os internamente. Não havia excedente de produção, pois não havia procura para tal. Com o amplo contato entre o Oriente e o Ocidente nos séculos que se seguiam às Cruzadas, o comércio apareceu como alternativa para a vida camponesa. Grandes feiras começaram a serem montadas, não eram mais apenas comércios locais semanais, mas amplos espaços comerciais inter-regionais. Havia então a necessidade de sistematizar o grande número de compradores, vendores, transportadores, clérigos e guerreiros que se estabeleciam nesses locais. Assim, surgiam as primeiras cidades medievais, especialmente na Itália e na Holanda. E assim também surgiam os primeiros conflitos sociais em grande escala com a chegada de novas formas de vida e de pensamento.

Podemos elencar primeiramente o aspecto econômico como grande entrave nessa sociedade que se reconfigurava diante de outros padrões. Com maiores trocas comerciais, urbanização acentuada, a moeda também começou a ser padronizada e trocada em casas de câmbio. Todavia, a transição comercial e os juros dela decorrente eram considerados pecados para a Igreja e para a sociedade. A Usura era um mal a ser combatido ferozmente. Por exemplo, se A pegou emprestado um valor "x" de B, B deve devolver exatamente "x" à A, nem mais nem menos. Esse pensamento seria transformado gradativamente com o passar do tempo, entendendo-se que deveria se trabalhar o dinheiro assim como se trabalhava a terra. Chegamos à crise do modelo feudal e também à crise de diversos senhores. O camponês descobriu que pode trabalhar mais e conseguir um valor em troca por moedas. O senhor não poderia rejeitar, porque ele também queria comprar as ricas especiarias e roupas do Oriente trazidas pelos comerciantes. Mas será mesmo que ele não poderia rejeitar? Nesse âmbito, a própria Igreja insistia para que a a troca do trabalho pelo dinheiro não fosse aceita. A liberdade prometida entre os muros da cidade não havia chegado para muitos servos ainda e a formação das monarquias nacionais, ao invés de resolverem esse problema geracional, só o agravou com as diversas guerras travadas, sendo a Guerra dos Cem Anos a mais célebre. Como aponta Huberman (1986, p. 39): 

Enquanto a sociedade feudal permanecia estática, com a relação entre senhor e servo fixada pela tradição, foi praticamente impossível ao camponês melhorar sua condição. Estava preso a uma camisa de foça econômica. Mas o crescimento do comércio, a introdução de uma economia monetária, o crescimento das cidades proporcionaram-lhe meios para romper os laços que os prendiam tão fortemente.

Num segundo aspecto, religioso, desde o Cisma do Oriente em 1054, a Igreja já não era mais a mesma, o que vai ser demonstrado ainda de maneira mais servera com a transferência do papado para Avignon por Felipe IV, o Belo, rei da França em 1307. Com a volta do papado para Roma através de Gregório XI em 1377, há uma eleição de um papa rival em Avignon, Urbano VI, dando início ao Grande Cisma do Ocidente que perduraria até 1417, com a volta do pontificado único no Concílio de Constança. Enquanto isso, a Europa se dividiu principalmente naqueles países que seguiam Roma e os que seguiam Avignon, sendo, é claro, o poder monárquico agora muito maior com a criação dos Estados Nacionais e a respectiva centralização de poder.

Por último, olhando numa visão social, a Europa estava mergulhada na fome, na peste e na guerra. O descontentamento dos camponeses e dos senhores não poderia ser maior: as revoltas eclodiram por toda parte, nas cidades e nos campos, principalmente no século XIV. “Com a morte de tanta gente, era evidente que maior valor seria atribuído aos serviços dos que continuavam vivos” (HUBERMAN, 1986, p. 45). Os camponeses e os senhores feudais sabiam disso. Ambos queriam algo que fosse mais vantajoso para seus lados, o que forçou um choque entre ambas as forças. 

Os historiadores discordam das causas das revoltas camponesas. Uma corrente diz que os senhores de terras desejavam forçar os camponeses à prestação do trabalho, como antes; outra sustenta que os senhores se recusavam a conceder a comutação, quando o camponês já tinha consciência de sua força e lutava para conseguir vantagens. Provavelmente ambos estão certos (Ibid., p. 46).

As Revoltas Camponesas do século XIV foram mais do que apenas rebeliões locais, foram a forma de um grito dos que já estavam sufocados pelos desmandos, exigências e exploração por parte de seus senhores. Os camponeses desenvolveram uma “consciência de pertença a um grupo oprimido”, assim se juntaram para resistir aos impostos e às taxas cobradas pelos nobres.

Segundo Costa (2002): As calamidades que afetaram os abastecimentos (especialmente os anos muitos chuvosos a partir de 1309 e depois nos anos 1315-1317), as sucessivas guerras (com suas pilhagens e incêndios de colheitas), a Grande Peste de 1348 e 1349, o consequente despovoamento dos campos e a restrição dos espaços cultivados (DUBY, 1988, vol. II: 161-178) afetaram a crise das ordens no ano de 1358, e, especialmente, a imagem que o camponês tinha do pacto social e da nobreza como um todo.

Com as derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos, o cativeiro do rei João II (1350 – 1364) na Inglaterra após a derrota na Batalha de Poitiers (1356), demonstrado uma falta de capacidade dos cavaleiros em proteger o rei, já que isso era uma das únicas coisas que justificava o fato de possuírem riquezas, os primeiros Estados Gerais na França foram convocados em 1355 e 1358 para pagar o resgate do rei. Após um levante burguês, em 1382 os camponeses se subelevam. Começou a Revolta dos Jacqueries. “A principal motivação dos jacques era o extermínio puro e simples da nobreza, ou, nas palavras de Froissart, ‘destruir a todos os gentis-homens e nobres do mundo para que não restasse ninguém’” (COSTA, 2002).    

Marcada pela brutalidade, a revolta dos Jacques não conseguiu diminuir as exigências senhoris, mas seu líder Guilherme Carle e seus membros foram mortos. Algo semelhante a aconteceu um ano antes na Inglaterra na Revolta de Tyler em 1381 quando um oficial real, John Brampton tentou cobrar um imposto por cabeça não pago em Bretwood, no Condado de Essex, o que gerou uma grande reação por parte dos camponeses e dos artesãos urbanos. Os rebeldes entraram em Londres e a revolta se expandiu para Leste, mas foi rapidamente sufucoda por oficiais do rei, todavia, ao contrário dos jacqueries, a reforma fiscal foi interrompida na Inglaterra e a instituição da servidão começou a declinar por razões econômicas.                                      

Anos mais tarde ocorreria na Galiza, uma guerra civil, devido às proporções que tomou, entre servos, membros da baixa nobreza, moradores das cidades e a monarquia, a alta nobreza e parte do clero. Os motivos foram especialmente a forma cruel de tratamento dos senhores mais a união dinástica entre os reinos de Leão e Castela que contribuíram para importância da região e do trabalho lá desenvolvido que não era reconhecido pelos senhores de terra. Apesar de mais de 130 castelos e fortificações serem destruídos, em 1469 houve um contra-ataque feudal que acabou por dar fim à Revolta Irmandinha.

Castelo de Sandiás, província de Qurense, na Galiza

O resultado foi um enorme número de mortos de ambos os lados ao mesmo tempo em que ruiam as estruturas da organização feudal. Agora a terra podia ser comprada, vendida e trocada livremente como qualquer outra mercadoria. Não era mais estática e imutável. Por mais resistências e lutas, a Idade Média estava dando os seus últimos suspiros, ou melhor, como: 

[…] numa composição em que morte e vida, novo e antigo, se entrecruzam e se fecundam, o brilho ‘púrpura e ouro’ do Renascimento se transformou naquele de um sol poente, em que os tons crepusculares do outono medieval se misturaram aos tons alvorais da primavera renascentista, a ponto de se confundirem como verso e reverso de um mesmo processo (DAMAS apud., HUIZINGA, 2021, p. 11).

Referências

COSTA, Ricardo da In: CHEVITARESE, André (org.). O campesinato na História. Rio de Janeiro: Relume Dumará / FAPERJ, 2002, p. 97-115

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21°ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC, 1986.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Tradução de Francis P. Janssen. Introdução de Naiara Damas. Posfácio de Anton Van Der Lem. São Paulo: Penguin, 2021.

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